19 maio 2016

Everybody lies?

Somos todos humanos. E não precisamos de nenhum provérbio para reconhecer que todos cometemos erros. Profissionais de saúde incluídos. Mas numa geração marcada por horas e horas de ER, HouseGrey's Anatomy, entre outros, o que é para nós aceitável nesta área? O que é para nós erro ou negligência?

Ontem fui confrontada com mais uma dessas histórias. Triste. Um amigo de amigos. Novo, muito novo. Que chega às urgências num sábado à noite depois de uma semana de Queima, queixando-se de dores de cabeça. Recambiado para casa com uns analgésicos. Sem mais exames porque, ei, sábado à noite? Um jovem destes? Ressaca, não? Não. Aneurisma. Não detectado. Até ser tarde demais. Podia ter tido o mesmo desfecho, mesmo que os exames tivessem sido feitos naquela noite? Não sei. Ele também nunca o saberá. Pior ainda, a família e amigos nunca o saberão. Porque, aparentemente, ali no hospital, não acreditaram que a dor era forte. Que não era bebida, que não era outra coisa qualquer típica de jovem.

Terá sido exactamente assim? Não sei. Afinal, eu apenas ouvi uma versão. Não a vivi. Esta situação, pelo menos. Mas há uns anos atrás, eu passei por lá. Outro hospital. O dia a seguir ao Natal. O pesadelo de ver quem me deu a vida a lutar pela dela. Para os meus limitados conhecimentos, os sintomas eram graves. Descoordenação motora, afasia, um lado da face ligeiramente descaído. Nas urgências o primeiro veredicto foi algo como "pedrada de medicamentos". Assim. Sem mais exames. Porquê? Então, porque muita gente deprime no Natal, e abusam de ansiolíticos ou mesmo dos antidepressivos que tenham lá por casa. E juntam a isso algum álcool. Não. Garantimos que não era o caso. Uma TAC, pelo menos. Não valia a pena, aquilo com umas horas de sono ia ao sítio. E além disso era Natal, agora encontrar técnicos e médicos para fazer e interpretar exames? Foi uma guerra de vontades. Uma que acredito só ter sido vencida pela presença de uma familiar médica do nosso lado. Uma espécie de favor ou consideração pela pedido da "colega". A "pedrada" era afinal um tumor cerebral, a ser operado o mais rapidamente possível.

A minha história, ao contrário da primeira, teve um final feliz. E o profissionalismo com que trataram de tudo num outro hospital só merece elogios da minha parte. Mas serão as outras situações normais? Habituais? Seremos nós demasiado exigentes naquilo que podem e devem fazer os médicos que nos atendem? Esperamos demais? Reivindicamos muito? Ou é exactamente o contrário? Acreditamos cegamente? Não tenho a certeza. Mas deixo mais perguntas. A quem lá está. Se ali entrasse um vosso amigo, pai, mãe, irmão ou irmã e não um estranho, davam o benefício da dúvida? Fariam tudo o que pudessem para descartar as piores hipóteses? Acreditariam que não estavam envolvidos álcool, drogas ou outra coisa qualquer? Sim? Então, porque não estender essa gentileza, essa confiança, aos familiares dos outros? Afinal, há situações em que nem toda a gente mente. Mas toda a gente é sempre gente de alguém.

6 comentários:

  1. Infelizmente as histórias são muitas, demasiadas, de tal maneira que só posso pensar que a competência é uma excepção.

    Ainda há um mês o meu tio, de 40 anos, deu entrada no hospital com muita dificuldade em respirar e com as veias super dilatadas. Disseram-lhe para ir para casa e para depois deslocar-se pelo próprio pé para o Santa Maria onde têm mais experiência naqueles sintomas. O meu tio exigiu que lhe fizessem um TAC e recusou-se a ir para casa pois sentia-se mal e nem conseguiria passar da porta, quanto mais ir para Lisboa (ele mora no Alentejo). No fim das contas esteve lá 29 horas nas urgências, gritando, exigindo, cheio de fome e mal estar, até que decidiram mandá-lo de ambulância para o Santa Maria. Era um tumor no diafragma, a crescer consideravelmente de dia para dia e que o estava já a impedir de respirar.

    Mais uma história que acabou bem, mas podia não ter acabado, porque mais uma vez os profissionais de saúde fizeram juízos de valor antes de tempo.

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    1. Eu ainda acredito que as histórias boas superam as más. Ou quero acreditar. O problema é que um só deslize, um mau julgamento, e alguém fica sem alguém...

      No caso do teu tio, acho que fez bem. Quando realmente sabes que algo se passa contigo, é perder a vergonha e insistir até ser ouvido. Quantas pessoas se calam e acabam por lamentar essa decisão.

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  2. A incompetência é revoltante, especialmente nessa área onde está em jogo a vida das pessoas.

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    1. Eu até consigo entender o desânimo e as fracas condições de trabalho, mas realmente, nesta área, o impacto de não fazer todos os possíveis, pode ser demasiado sério. Um erro aqui não tem volta. E, por vezes, quem sabe, um simples exercício de empatia podia fazer toda a diferença...

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  3. Tinha escrito todo um texto...porque tenho uma opinião muito pessoal sobre estes casos... No entanto, a verdade é que temos um serviço de urgências tão saturado de coisas poucas urgentes, que depois não há espaço para os casos que verdadeiramente o são. Não há tempo para diagnóstico, muito desse tempo ocupa-se a tratar unhas encravadas e constipações e casos que deviam estar ao cuidado do médico de família.

    Temos 0 educação cívica de quem trata... e um serviço de triagem miserável. Médicos cheios de preconceitos, derivados em parte dum mau uso do serviço de urgências por parte dos utentes. Uma cultura de desapego e "deixa-andar" triste. Muito triste e que resulta nestes casos desastrosos de "por uns pagam os outros", como parece ter sido o caso...

    Lamento o que aconteceu :(

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    1. Concordo com o que dizes e também acredito que há responsabilidades de ambas as partes. A cultura do desapego parece cada vez mais vincada e isso assusta-me. A todos os níveis, mas nesta área então... Não considero que haja profissões de 1ª e de 2ª, mas é diferente falhar um prazo e perder um cliente ou falhar um diagnóstico e perder um doente. No primeiro caso, a vida continua, há sempre hipótese de corrigir e melhorar, já no segundo, nem por isso...

      Confesso que tenho algumas dificuldades com esta questão de perder alguém. Para uma pessoa que tem sempre esperança no futuro e acredita que tudo tem solução, lidar com a única coisa que é garantidamente inevitável e irreparável mexe bastante com o sistema.

      Também lamento :(

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