16 fevereiro 2015

Memórias de uma vida que passou*

Podia ter sido um dia como outro qualquer. Começou dessa forma. Apenas mais um, perdido no meio de tantos. Previsíveis, tranquilos, com certezas absolutas. Sem nada que o distinguisse, sem nada que permitisse prever um final diferente. Até ao momento. Aquele momento, uma simples pergunta, uma simples observação que, do nada, concentra em si todo o poder do inesperado. A sensação de pavor é invasiva, incapacitante, não deixa espaço a racionalizações, obriga-me a correr, a suplicar por favor não, por favor, por favor... Preciso de ver, de saber, acreditar até ao último instante que não, não comigo, não connosco, é só mais um dia, no meio de tantos que temos, não, não e não. Chego e os meus olhos correm a cena, frenéticos, desfocados, lágrimas? Não vejo, não reconheço, aquele corpo estendido, rodeado, o caos de uma vida que se esvai, os esforços de quem a tenta salvar, ali, naquele momento, o inesperado, não, não! Um mantra repetido até à exaustão, pensamentos que não se fixam, desfilam, velozes, indistintos, sem nada nem ninguém que os pare. Mas por entre a visão embaciada algo atinge a confusão, uma imagem indistinta, afastada, cabeça escondida entre os joelhos, um corpo que balança, perdido no meio de outros. O reconhecimento atravessa a mente, ilusão? Esperança que me move os pés, de forma lenta, depois com urgência, a urgência de ver, de sentir, de acreditar. E caio também eu de joelhos, tal como ele, tal como as lágrimas dos dois, reunidos no abraço de quem temeu ver fugir o que sempre considerou certo. Esse toque, esse aperto, o sentir nos braços alguém cujo bem-estar colocamos acima do nosso faz-se acompanhar pelo alívio, que me inunda, com força, bem-vindo, obrigada, muito obrigada... Mais um momento, uns segundos, uns minutos? A vergonha, é ela que corre agora, ligeira, discreta, escondida, arrastada pelas outras sensações, vai ganhando terreno, enquanto observo, agora, a cena que continua a desenrolar-se em torno de mim, de nós. Foi apenas uma ameaça, um pequeno abalar da normalidade da vida, mas é real para outros que não eu, está ali, continua, um pesadelo que não acaba. E eu sinto o quê? Gratidão? Sim. Manchada. Em luta, envergonhada, o amor é afinal egoísta. Um ano depois, e ainda não sei qual dos sentimentos preserva esta memória em mim.

*Outra década, outro local, outra vida.

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